Há um mês com dor forte em um dos dentes, Maria Santana, 56, procurou a UBS (Unidade de Básica de Saúde) mais próxima à sua casa. “O dente estava mole e doía muito, até quando eu fazia ações simples, como falar ou espirrar. Ainda demorei para procurar atendimento por conta das obrigações da rotina”, conta ela, que é vendedora ambulante na cidade de São Paulo.

 

Depois de algumas horas de espera, a dentista que a atendeu disse que não podia realizar a extração que o caso pedia. Apenas limpou o local e receitou remédios analgésicos. Na semana seguinte, ainda com o incômodo, Maria precisou recorrer a uma UPA (Unidade de Pronto Atendimento), onde conseguiu tirar o dente.

 

“Preferia manter meu dente, mas do jeito que estava, não tinha jeito. Já é o terceiro que tiro —acho que vou acabar banguela. Apesar de ter consciência de que preciso fazer um acompanhamento regular, pela demora, acabo desistindo”, diz.

 

O relato de Maria mostra que, embora exista, o atendimento odontológico gratuito no país caminha a passos lentos. Isso porque, por muito tempo, a odontologia esteve à margem das políticas públicas de saúde. Dependendo da necessidade, dentista era, sim, coisa de rico.

 

Com atendimentos limitados e de difícil acesso, os brasileiros se acostumaram a procurar atendimento odontológico só em casos de dor —às vezes, depois de resistir por bastante tempo com o uso de analgésicos.

 

Buscando mudar esse quadro, em 2003 o Ministério da Saúde lançou a Política Nacional de Saúde Bucal, dando origem ao programa conhecido como Brasil Sorridente.

 

Atendimento odontológico no SUS

Foi só com a criação do programa que o SUS (Sistema Único de Saúde) passou a não só ofertar serviços simples, antes contava-se apenas com a UBS—, mas também a oferecer próteses dentárias e aparelhos ortodônticos.

 

“Até 2003, o paciente dependia da sorte de encontrar um profissional da rede que tivesse a especialidade necessária para tratar seu caso. Ficava-se sabendo, por exemplo, que em determinado bairro havia um dentista que fazia cirurgia no terceiro molar [dente do siso]. Era tudo informal”, lembra Marco Manfredini, cirurgião-dentista e representante do CROSP (Conselho Regional de Odontologia de São Paulo) no FCAFS (Fórum dos Conselhos de Atividades Fim da Saúde do Estado de São Paulo).

 

O profissional também ressalta que o programa foi um grande salto na oferta por saúde pública em relação ao mundo. “Os procedimentos bucais ficam fora mesmo em países que têm sistemas universais de saúde, ou se priorizam apenas algumas faixas etárias.”

 

A UBS funciona como porta de entrada para uma primeira avaliação. Depois, no CEO (Centro de Especialidades Odontológicas), o paciente pode receber serviços como diagnóstico e detecção do câncer de boca, periodontia especializada, cirurgia oral menor dos tecidos moles e duros, endodontia e atendimento a pessoas com deficiências.

 

Se há necessidade de prótese, os moldes são enviados para laboratórios. Já se o paciente tem alguma comorbidade grave, ele é encaminhado para tratamento em unidade hospitalar.

 

A disponibilidade dos tipos de atendimentos em cada cidade podem ser checadas no site do Ministério da Saúde.

 

Atendimento no SUS evoluiu ou regrediu?

“Depende se você olha o copo meio cheio ou meio vazio”, diz Manfredini. “Com a criação do Brasil Sorridente em 2003, a oferta de serviços foi quase triplicada, mas ainda é insuficiente”, explica.

 

De acordo com um documento produzido em 2019 pela Faculdade de Odontologia da USP (Universidade de São Paulo), entre 2004 e 2014, o Brasil Sorridente investiu mais de R$ 5 milhões em pesquisa científica, em parceria com universidades e centros de pesquisa. No mesmo período cresceu em 50% o número de cirurgiões-dentistas no SUS.

 

A maneira de atender pelo SUS é passar em concursos públicos abertos pelas prefeituras da cidade. Há cerca de 64 mil dentistas no SUS —aproximadamente 30% dos profissionais do país.

 

Mas Manfredini e Moacir Tavares, professor de odontologia na UFC (Universidade Federal do Ceará), relatam que nos últimos anos, houve estagnação.

 

“Por falta de financiamento, assim como acontece também com outras áreas do SUS, há muita dificuldade para criar novos CEOs, laboratório de próteses, ampliar equipes na saúde da família… E assim alcançamos menos pessoas”, diz Tavares.

 

Segundo a ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar), em 2019, as operadoras de planos odontológicos realizaram 189 milhões de atendimentos — sem contar atendimentos realizados em âmbito particular—, enquanto o SUS, segundo a Coordenadora de Saúde Bucal do Ministério da Saúde, Caroline Martins informou durante o Pocket Simplo 2020 realizado pela SINOG (Associação Brasileira de Planos Odontológicos), realizou pouco mais de 40 milhões de atendimentos.

 

Dados epidemiológicos da Pesquisa Nacional de Saúde Bucal apontam que de 62 milhões de brasileiros acima de 18 anos, 34 milhões perderam 13 dentes ou mais e 14 milhões perderam todos os dentes. Atualmente, de acordo com a ANS, apenas 13,5 % dos brasileiros têm plano odontológico

 

Os avanços demonstrados desde a criação do Brasil Sorridente pelos dados da mesma pesquisa são mais expressivos em algumas partes do país. Um estudo que analisou esses dados e a eficácia do programa mostra que houve uma diminuição da carga de doenças bucais da população brasileira, entre eles queda das cáries e o aumento de adultos com dentes na boca.

 

A capital de Santa Catarina, Florianópolis, foi a cidade que apresentou maior avanço: 68,40% de sua população com 12 anos não apresentava cárie, dentes perdidos ou obturados, sendo a maior taxa populacional brasileira livre de cáries.

 

Essa melhora, no entanto, não é refletida em toda a população. Há discrepâncias relacionadas a disponibilidades do serviço —que geralmente são menores fora das capitais— e as piores condições epidemiológicas em locais com maior vulnerabilidade social. Piores situações de vida, dentre elas, alta densidade domiciliar, baixa taxa de saneamento básico, alta taxa de analfabetismo, alta proporção de pessoas de baixa renda e menor esperança de vida foram encontradas nas capitais com maiores índices de cárie e perda dentária e menores taxas de jovens livres de cárie.

 

Negligência com a saúde bucal ainda se perpetua

“O cidadão comum geralmente fica mais aflito quando há um mal-estar geral no corpo, algo que o faça pensar que sua vida está em risco. A negligência com a saúde bucal no Brasil é histórica, não só no SUS”, diz Moacir Tavares, explicando que muitos não sabem a importância de cuidar da boca.

 

Sem o cuidado, de fato, há riscos. Bactérias que surgem por falta de higiene bucal podem passar para a corrente sanguínea e chegar a outros órgãos, causando problemas como endocardite bacteriana (infecção no coração) e pneumonia.

 

Além disso, há problemas mais comuns. “Não poder falar ou mastigar corretamente pela falta de dentes e por consequência, uma baixa autoestima. A saúde bucal é integrante. Não há saúde sem saúde da boca e não há saúde da boca sem saúde geral”, completa Tavares.

 

Fluoretação da água no Brasil é avanço na saúde bucal

A fluoretação das águas de abastecimento é recomendada pela OMS (Organização Mundial da Saúde) como medida indispensável para as estratégias de saúde bucal, além de ser parte das diretrizes da PNSB (Política Nacional de Saúde Bucal).

 

“É uma medida eficaz e, muitas vezes, a única que chega para algumas populações. Além disso, o custo é barato, menos de R$ 1 por ano por habitante”, explica Manfredini.

 

Em 2021, um novo documento preparado pelo CECOL/USP (Centro Colaborador do Ministério da Saúde em Vigilância da Saúde da USP) a pedido do CROSP apresenta análises sobre os aspectos epidemiológicos, benefícios à população e importância do controle da substância.

 

A pesquisa esclarece que não há evidência de risco à população de quadros como cânceres, osteoporose, autismo, aborto, anomalias congênitas e efeitos sobre a inteligência, a tireoide, o sistema endócrino e os padrões de mortalidade, preocupações levantadas nos últimos anos.

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