A alta demanda de tratamentos odontológicos, represada nos primeiros meses da pandemia, começa a lotar consultórios em São Paulo e no restante do País, impulsionada pelas flexibilizações da quarentena. Dados nacionais coletados pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel) apontam que os atendimentos caíram 83,5% no sistema público e 68,2% na rede privada em maio, mas profissionais dizem já ver sinais de retomada. Dentistas, ortodontistas e cirurgiões relatam ainda aumento nos casos de bruxismo, fraturas dentárias e cáries, problemas frequentemente ligados à ansiedade ou dieta desequilibrada.

“A odontologia sofreu praticamente nos mesmos termos de toda a economia no Brasil. Agora, nesse segundo momento, depois de praticamente três meses sem atendimento, a demanda reprimida vem sendo atendida a contento”, diz o presidente do Conselho Federal de Odontologia (CFO), Juliano do Vale. Segundo a regional paulista do conselho, 67,1% dos profissionais trabalharam só com emergências na crise sanitária.

No início da pandemia, o CFO pediu ao Ministério da Saúde que suspendesse consultas na rede pública para manter só atendimentos emergenciais. Em abril, a solicitação foi reforçada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Paralelamente, a rede privada implementou medidas adicionais de biossegurança, do uso de EPIs a um maior intervalo entre pacientes para a desinfecção dos consultórios.

Em agosto, a Organização Mundial da Saúde (OMS) reforçou a orientação de adiar a ida ao dentista em regiões onde houvesse transmissão comunitária do vírus. Entre os argumentos, estava o risco de transmissão por pequenas partículas que saem da boca. Ainda há, porém, poucos estudos que descrevam a ameaça de contágio nesses espaços, e a recomendação foi recebida com ultraje por órgãos internacionais. Nos Estados Unidos,  a Associação de Dentistas Americanos (ADA) divulgou resposta na qual “respeitosamente, mas fortemente discorda” da posição do órgão mundial, afirmando que tratamentos odontológicos são essenciais à saúde. O movimento foi replicado pela Associação de Dentistas Canadenses (CDA, na sigla original em inglês) que alegou em comunicado que o país não tinha a situação epidemiológica descrita pela OMS e que os tratamentos não só estavam disponíveis, mas não deveriam ser adiados.    

Dados do Ministério coletados a pedido do CFO mostraram que cirurgiões-dentistas, auxiliares e técnicos em saúde bucal foram os menos afetados pela covid-19 dentre profissionais da saúde. Até o fim de julho, mais de quatro meses após o vírus chegar ao Brasil, o setor tinha registrado 4.589 infectados e cinco óbitos no País. “Nas campanhas do CFO, reforçamos que todos se acostumaram a ver o dentista atendendo de jaleco, luva e óculos. Sempre convivemos com esse risco de contaminação, fosse pelos vírus do HIV, da tuberculose etc.”, explica Vale. 

Foram as clínicas e consultórios particulares que acabaram recebendo grande parte da demanda de tratamentos não emergenciais, que tiveram redução expressiva na rede pública. Conforme a Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo, as 422 Unidades Básicas de Saúde (UBSs) realizaram quase 1 milhão de consultas a menos de janeiro a agosto, ante o mesmo período de 2019.

“No momento em que abriram os shoppings, houve aumento pela procura. O cidadão começou a se sentir mais seguro”, diz Marcos Capez, presidente do Conselho Regional de Odontologia de São Paulo. A retomada do movimento, que começou em junho na capital paulista, foi sentida também em nível nacional, reforça Juliano do Vale.

Desequilíbrio emocional reflete na saúde da boca, diz especialista

Agora, três meses desde que essa retomada começou nos consultórios, dentistas se deparam com diferentes tipos de problemas que se agravaram durante a pandemia. “Pacientes com dentes fraturados, quebrados e outros procurando placas de bruxismo e relaxamento. A descarga das tensões emocionais, principalmente nos casos de bruxismo, aumentaram durante a pandemia. Houve um desequilíbrio emocional que refletiu na saúde bucal”, conta Marcos Capez, do conselho paulista.

“A pessoa que está com quadro ansioso e ficou confinada mudou o hábito e ingeriu mais açúcar, mais álcool, fumou mais do que fumava. Dá para conectarmos essa questão com a saúde alimentar também, porque muitos migraram do escritório para casa durante a pandemia, e isso repercute em mais comida processada ou por delivery”, observa. Em maio, pesquisa da Fiocruz com mais de 40 mil brasileiros constatou que 34% dos fumantes aumentaram o número de cigarros fumados por dia e 18% da população passou a ingerir mais álcool na quarentena.

“Se ficar em casa por muito tempo, vai ter dor de dente, precisar de higienização, remoção de tártaro, prótese e ainda tem toda a parte estética para cuidar”, observa Mario Cappellette, presidente do núcleo paulista da Associação Brasileira de Odontologia (ABO-SP). Ele afirma que percebeu e também ouviu de colegas relatos sobre o aumento dos casos de bruxismo e, consequentemente, de dentes quebrados ou fraturados.

“Isso está relacionado ao estado nervoso que a pessoa se encontra. Quando você dorme, entra na fase de sono sem relaxamento e joga a força mastigatória na mandíbula, que acaba travando”, explica Roberta Lopes Cesario, mestre em Ortodontia e professora da ABO-SP.  Essa concentração da ansiedade e estresse na mandíbula pode resultar em dentes fraturados ou quebrados. Artigo publicado pelo jornal americano The New York Times, de setembro, também tratava de uma “epidemia” de dentes quebrados observada nos consultórios norte-americanos. “Vi mais dentes quebrados em seis semanas do que nos seis anos anteriores”, relatou Tammy Chen, uma especialista em prótese dentárias de Manhattan. 

Outros sintomas comuns são dor de cabeça, boca, ouvido, enxaqueca, fadiga e dificuldade de concentração, além de disfunção temporomandibular (DTM). “Todo mundo teve de se adequar ao ‘novo normal’, mas algumas pessoas ainda tiveram de fazer isso com dores referentes à falta de tratamento. Até as crianças estavam rangendo os dentes também, com alteração de comportamento”, aponta Roberta.

Alta de custos também afeta rotina dos profissionais

Outro fator que pesou e ainda pesa no bolso dos dentistas que trabalham durante a pandemia é o preço de insumos e equipamentos de proteção, que chegaram a custar até 3 mil vezes mais do que antes. “O setor privado teve um efeito muito grande porque os governadores, com razão, priorizaram a disponibilidade de insumos para as equipes médicas. Isso chegou a faltar no setor privado e o preço explodiu”, afirma Capez, do Conselho Regional de Odontologia de São Paulo. Uma caixa de máscaras com 50 unidades, por exemplo, foi de R$ 12, em janeiro, a até R$ 300. As luvas, de R$ 20 a quase R$ 70.

“Como estávamos no forte da pandemia, muita gente tinha reduzido em até mais de 90% o atendimento. O prejuízo pode ter chegado até ao total do faturamento prévio”, destaca Rafael Moraes, professor da Faculdade de Odontologia da UFPel e um dos responsáveis pela pesquisa sobre a redução de movimento nos consultórios no País.