Mais de dois séculos após martírio de Tiradentes, odontólogos lutam contra uma poderosa ameaça ao Brasil, atuando na prevenção de doenças que podem agravar quadro de Covid-19
“Como recém-formado, fui inserido diretamente na área de Covid e isso foi um choque de realidade, porque eu via pessoas morrendo. Era tudo muito novo. É muito angustiante saber que estamos diante de um problema que está afetando tanta gente”. No início deste ano, deu início à trajetória no Instituto de Medicina Integral Professor Fernando Figueira (Imip), onde começou a atuar na prevenção de doenças bucais em pacientes internados na UTI de Covid.A equipe odontológica é acionada somente com a solicitação de um parecer, geralmente emitido por médicos, enfermeiros ou fisioterapeutas, caso exista suspeita de lesão na boca do paciente. Os dentistas verificam se a higiene está sendo feita de forma adequada pela enfermagem e se há lesões. Identificado trauma bucal, os profissionais intervêm para que o quadro clínico do paciente não se agrave. “Quando a hidratação do lábio não é feita de maneira correta no paciente em UTI e o tubo permanece na mesma posição, algumas feridas podem ser causadas na boca pelo ressecamento e a pressão do tubo. A gente sempre lembra a equipe para mudar de posição para evitar que o tubo ocasione ferida e um quadro infeccioso”, diz.
“Quando essa higiene não é feita corretamente ou quando bactérias migram para outros lugares, é muito comum o agravamento do quadro de pneumonia. Por isso é importante manter essa higiene bucal”, acrescenta. No caso de doenças fúngicas ou virais, é feita uma prescrição, se necessário, da medicação e o paciente passa a ser acompanhado, até que ocorra a cura da lesão diagnosticada. Dentro dessas lesões, o paciente pode ser acometido por candidíase, herpes simples ou outras inflamações na boca.
Apesar do medo da contaminação ou de levar o vírus para os familiares, Douglas tenta se apagar aos frutos positivos que seu trabalho pode render aos pacientes. “É gratificante saber que por mais que aquele paciente esteja numa situação difícil, a gente faz o máximo para que ele tenha uma possibilidade de melhorar. Nesse momento de pandemia, tivemos que ressignificar aquilo que já fazíamos. A gente se entrega para que a pessoa realmente consiga ter o quadro melhorado.”
Na cura e na perda, duas despedidas muito diferentes
A cirurgiã-dentista Fabiana Motta chega todos os dias ao Imip às 7h, unidade onde atua há 26 anos, e coordena a equipe de residência de odontologia hospitalar da qual Douglas faz parte. Mais de um ano de pandemia se passaram e ainda é difícil lidar com as despedidas.
“O dentista lida muito pouco com a morte. Eu já trabalhava em ambiente hospitalar com paciente oncológico e de UTI. Essa rotina já é diferente, são pacientes que já têm uma finitude bem descrita. Às vezes, são semanas de vida, então existe um preparo diferente. Mas no dia em que eu me acostumar com isso vai estar na hora de parar de trabalhar na área da saúde”, conta.“Acabei perdendo muitos pacientes para a Covid-19, principalmente oncológicos. Pessoas que lutaram para se recuperar de outra doença. A gente acompanha esses pacientes por anos. Eles passam por tratamento de radioterapia e quimioterapia e, de repente, adoecem por Covid e vêm a óbito. Depois de terem resistido a tantos tratamentos, de terem sido tão fortes. Profissionalmente e como pessoa, isso abala muito, porque é criado um vínculo com esses pacientes”, lamenta.
O respiro para Fabiana chegou junto à vacina. Parte do grupo prioritário, ela já tomou as duas doses. Ainda assim, diante do cenário enfrentado pelo país, existem outras batalhas a serem travadas diariamente. “Minha maior luta é permanecer com a saúde mental em dia e com a percepção contínua de que nós fazemos a diferença na vida do paciente. A odontologia é tão importante quanto qualquer outra profissão dentro da equipe multidisciplinar.”
O que muito ajuda é o próprio exercício da profissão, que chega em tom de recompensa. “No final de tudo isso, a gente ganha muito mais do que dá. A satisfação do paciente recebendo alta, a gratidão no olhar, a satisfação de ver que o paciente se sentiu acolhido em um ambiente que é hostil. Poder dar uma palavra de conforto, de motivação: ‘vai ficar tudo bem’. Não há satisfação maior do que quando a gente vê que o paciente realmente está indo para casa”.