Fonte: Jornal da Universidade UFRGS
Graduandos e pesquisadoras da Odontologia destacam a necessidade de um atendimento em saúde bucal que considere as especificidades dessa população
A moradia adequada é um direito humano fundamental desde 1948 e vai além do espaço físico: refere-se ao direito de se construir um lar e de se ter acesso a uma comunidade, o que é indispensável à proteção da vida, saúde e liberdade. O número de indivíduos e grupos vulneráveis que vivem sem habitação, no entanto, tem aumentado em todo o mundo, atingindo países de baixa, média e alta renda, estando presentes em contextos urbanos, suburbanos e rurais.
Estima-se que cerca de cem milhões de pessoas no mundo estejam desabrigadas. E, também, que 1,6 bilhão de pessoas (cerca de 20% da população mundial) viva em habitações inadequadas. Para exemplificar, há a situação brasileira em que, segundo dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), a população em situação de rua cresceu cerca de 140% a partir de 2012, chegando a quase 222 mil pessoas em março de 2020. A perspectiva é que essa situação se acentue ainda mais com a crise econômica atual.
Os problemas de saúde enfrentados pela População em Situação de Rua (PSR) têm origem em situações diversas. O contexto em que essas pessoas estão inseridas implica diretamente a condição de saúde na qual se encontram. Pode-se destacar como pontos de complexidade no cuidado em saúde dessa população o uso de drogas lícitas e ilícitas, a dificuldade de prevenção de certos agravos transmissíveis (como tuberculose, dermatoses), os problemas em saúde mental e o rompimento de vínculos na relação familiar. Esses problemas, combinados, produzem necessidades de saúde mais complexas e demandas de atendimento de emergência mais frequentes do que entre a população em geral.
Nesse contexto, realizamos uma revisão de escopo, que é um tipo de síntese do conhecimento que mapeia sistematicamente as evidências sobre um assunto específico. Nessa revisão, o objetivo foi mapear o que a literatura apresenta sobre as condições de saúde bucal da população em situação de rua.
Como resultado, identificaram-se 39 artigos publicados entre 1984 e 2021, sendo 24 desses estudos realizados em apenas quatro (Estados Unidos, Austrália, Canadá e Inglaterra), dos 15 países identificados na pesquisa, demonstrando uma grande desigualdade na produção de conhecimento com essa temática no mundo.
Com relação às condições de saúde bucal, existem diferentes fatores que tornam as pessoas em situação de rua um grupo em vulnerabilidade para doenças bucais, como o estilo de vida instável, a alimentação e a higiene pessoal (incluindo oral) irregulares, os hábitos de vida, como etilismo e tabagismo. Além disso, outras variáveis, como o custo do tratamento odontológico, a falta de percepção da necessidade de tratamento, a logística do acesso ao serviço e o preconceito são tidas como barreiras diretas no acesso aos cuidados odontológicos para esse grupo.
A cárie é resultante da interação de aspectos biológicos, comportamentais, socioeconômicos, do acesso aos serviços de saúde e dos cuidados recebidos. A maioria dos estudos sobre o tema faz uso do índice CPO (sigla para “Cariados, Perdidos e Obturados”), composto pela soma dos dentes afetados pela cárie, estejam eles ainda não tratados (cariados) ou tratados mediante uma abordagem conservadora (obturados) ou mutiladora (extraídos/perdidos). Foram encontrados resultados que sustentam uma importante experiência de cárie na população em situação de rua.
A precariedade das condições em saúde bucal da população em situação de rua observada nos estudos é reflexo da invisibilidade social dessas pessoas no âmbito das políticas públicas. A condição de saúde dessa população é marcada por iniquidades em saúde bucal e, mais do que conhecer as condições de morbidade bucal da população, é necessário entender a relação da doença com as condições sociais e econômicas para que se possa efetivamente promover saúde bucal.
Esse cenário de altos índices de doenças bucais e alta vulnerabilidade social evidencia a necessidade de um olhar atento para o cuidado prestado a essas pessoas, com a compreensão de que esse é um grupo distinto, heterogêneo e que demanda serviços preparados para atender às suas necessidades, compreendendo ações e políticas que considerem as pessoas em sua integralidade biopsicossocial.