Há quem diga que não há dor pior do que a dor de dente. Na maioria das vezes, esse desconforto é causado por um estágio bastante avançado de cárie, aquele buraco que se forma no nosso dente quando falhamos na higiene bucal. Mas e se o dente danificado tivesse a capacidade de se regenerar? 

Pode parecer coisa de filme de ficção científica, mas especialistas em odontologia afirmam que num futuro próximo isso será possível graças à aplicação de medicamentos que estimulam as células-tronco que temos na polpa dos nossos dentes.

Uma pesquisa publicada em 2017 por pesquisadores da King’s College London descobriu que a administração de uma droga chamada Tideglusib, que está sendo testada para o tratamento de Alzheimer, pode estimular células-tronco da polpa dental, que é formada por vasos, nervos e diferentes tipos celulares, a produzir dentina, que é a parte dura que protege a polpa do nosso dente.

Em outras palavras, a droga estimula fatores de crescimento que o organismo produz naturalmente para melhorar as condições de reparo do dente.

Falta muito para que a pesquisa vire remédio?
Toda pesquisa cientifica começa com estudos in vitro, onde se pode analisar o efeito da droga em células dentro do laboratório. Essa é a primeira fase. Depois são feitos testes com camundongos. Nessa etapa, os pesquisadores da King’s College London observaram que levava até seis semanas para que o dente do camundongo fosse
completamente restaurado.

Depois disso foram feitos testes com ratos, que são mais ou menos dez vezes maiores que os camundongos. Segundo Neves, nessa fase os resultados também se mostraram bastante positivos. A próxima fase seriam os ensaios clínicos, que são testes em humanos.

Carla Renata Sipert, professora de Endodontia da Faculdade de Odontologia da USP (Universidade de São Paulo), afirma que essa fase é crucial, pois é a que vai definir se a droga é viável ou não para uso humano. 

“Às vezes ela passa por todas as fases de estudo animal, mas nas primeiras fases do estudo clínico mostra efeitos colaterais inaceitáveis. Então, é excluída da pesquisa e da possibilidade inserção no mercado”, diz. Segundo ela, é preciso seguir a risca esse longo percurso para evitar tragédias como a da talidomida, que causou máformação em milhares de bebês ao ser administrada em grávidas no final da década de 1950. 

Sipert afirma ainda que em um cenário bastante otimista, quando todos os resultados são favoráveis, pode levar no mínimo cinco anos para que uma substância vire uma droga com possibilidades de ser comercializada. Mas os pesquisadores da King’s College London estão enfrentando dificuldades para iniciar os testes clínicos. Segundo
Neves, a empresa produtora da droga usada na pesquisa de 2017 não tem interesse em fazer ensaios clínicos na área da odontologia.

“Estamos testando algumas drogas candidatas e repetindo os experimentos com novas opções enquanto procuramos uma droga de uma nova companhia que queira colaborar com a nossa pesquisa”, disse Neves. Neves afirma que a equipe coordenada pelo professor Paul Sharpe tem conversado com a AstraZeneca, empresa
biofarmacêutica com sede no Reino Unido, para dar continuidade ao projeto, mas que ainda é difícil estimar em quanto tempo a técnica poderia estar disponível nas mãos de dentistas de todo o mundo.

Sipert, da USP, explica que no geral ainda existe uma preocupação pequena na indústria farmacêutica para o desenvolvimento de produtos especificamente para a odontologia. “[Nesse caso] talvez por ser uma adaptação (a droga é testada para tratar Alzheimer), é capaz de a indústria farmacêutica não ver de uma forma confiável porque não foi produzido para a odontologia”, explica.

José Ricardo Ferreira, executivo-chefe da R-Crio, startup brasileira especializada na coleta de células-tronco da polpa do dente de leite, concorda que essa é uma prática geral das empresas e diz que isso se dá porque a fase de ensaios clínicos traz muitas exigências e normas em relação à responsabilidade sobre os testes. “O que as empresas querem são os resultados desses estudos, (…) porque a empresa acaba assumindo um nível de responsabilidade sobre pesquisa que ela na maioria das vezes não tem domínio”, acredita.

Para ele, no entanto, o uso de engenharia genética na odontologia é um caminho sem volta. “Esse é um conhecimento que vem se consolidando. Hoje já é possível você pegar uma pessoa que tem um canal tratado e reverter, revitalizar esse dente utilizando para isso células-tronco associadas à estratégia de engenharia de tecido”, explicou.

O que acontece no nosso dente quando temos cárie?
Uma série de bactérias vive dentro da boca naturalmente. Elas não causariam danos em uma pessoa que em uma higiene bucal adequada, ou seja, que sempre escova os dentes após as refeições e passa fio dental entre eles. Quando existe uma negligência nessa higiene o que vai acontecer é o acúmulo dessas bactérias, que tem a
capacidade de se aderir ao dente. Elas usam o açúcar da nossa dieta no seu metabolismo e produzem ácido, como consequência. É esse ácido que vai degenerar a estrutura do dente, formando a cárie.

“Quanto mais o paciente demora a procurar o profissional, mais profundo vai ficar esse desgaste. Quando a cárie avança e chega na dentina, a porção interna do dente, onde está a polpa, ele já começa a perceber que tem coisa errada acontecendo, porque já começa a formar um processo inflamatório como consequência dessas bactérias que estão invadindo a estrutura da dentina”, explica Sipert.

Segundo ela, a dor começa leve, quando há algum estímulo externo, como o ato de tomar um sorvete, mas se a cárie não for tratada o dente começa a doer por si só.
“Quando chegamos nesse ponto de inflamação significa que a polpa do dente chegou a um grau de inflamação que a polpa não consegue mais cicatrizar e precisa ser removida, seja por meio da extração do dente ou por meio da remoção da polpa somente que é o tratamento de canal”, diz.

Segundo ela, as pesquisas com células-tronco podem fazer com que em longo prazo esse processo passe de irreversível a reversível. “No futuro pode ser que a gente não precise mais tratar o canal, mas consiga usar o fator de crescimento em cima da polpa que não poderia mais cicatrizar para induzir a cicatrização dela. Então ela continuaria viva, continuaria produzindo uma nova dentina, que é uma nova camada desse tecido duro protetor, sem que nós precisássemos fazer o
canal”, acredita.

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